A violência nas periferias das grandes cidades não é novidade. Há quem diga que existe um urbicídio rondando, ou seja, que a cidade mata muitas pessoas. Mas a cidade em si não mata ninguém. As cidades, na verdade, são espaços de ir e vir nos quais cidadãos, especialmente os jovens, circulam para buscar melhores condições de vida, convivência, lazer, estudo e trabalho.
Neste post, propomos um debate em torno das violências sofridas especificamente por este público, apresentando o conceito e as aplicações do termo Juvenicídio. Aqui, abordaremos de que forma este triste fenômeno se apresenta dentro dos grandes centros urbanos e explorar algumas soluções possíveis. Dentre estas soluções, como redes de apoio se constroem e podem ser importantes aliadas na luta contra o Juvenicídio.
Já ouviu falar de Juvenicídio?
De acordo com o autor mexicano José Manuel Valenzuela, no livro “Juvenicídio: ayotzinapa y las vidas precarias em América Latina y España” (2015), o Juvenicídio representa o assassinato amplo e impune de jovens cujas identidades são desacreditadas.
O conceito, porém, não é apenas a contabilização de um número de mortos. Ele é a percepção de que isso é um fenômeno que, segundo o autor, se “inicia com a precarização da vida dos jovens, a ampliação da sua vulnerabilidade e a diminuição das opções disponíveis para que possam desenvolver seus projetos de vida”.
O mesmo autor traz que o Juvenicídio acontece devido ao abandono do Estado com relação às políticas públicas voltadas especificamente à proteção do jovem, além das políticas de encarceramento em massa.
O Atlas da Violência de 2020 aponta claramente que há maior probabilidade de ocorrência de homicídios entre os homens mais jovens. Os dados apontam que:
- o pico é aos 21 anos de idade;
- 55,3% dos homicídios de homens acontecem no período da juventude (entre 15 e 29 anos).
Além disso, o Atlas também mostra que o padrão de vitimização por raça/cor indica superioridade dos homicídios entre os homens e mulheres negros (pretos e pardos), em relação a homens e mulheres não negros, chegando a ser 74,0% superior para homens negros e 64,4% para as mulheres negras.
A violência contra o jovem na periferia Sul de São Paulo
Em abril de 2020, segundo dados da corregedoria da Polícia Militar de São Paulo (Fonte: G1), subiu em 53% o número de mortes de jovens causadas por policiais em comparação ao mesmo mês de 2019. E não é apenas os números de mortes causadas no horário de serviço que é assustador: nos quatro primeiros meses de 2020, PMs sem farda mataram 57 pessoas, um aumento de 62,85% em relação ao mesmo período em 2019.
De acordo com o Mapa da Desigualdade 2020, desenvolvido pela Rede Nossa São Paulo (p. 32), entre os bairros cujo os coeficientes de mortalidade de jovens (15 a 29 anos) por homicídio e intervenção legal estão entre os 14 piores índices analisados, 4 deles (29%) estão na região Sul: Campo Limpo, Jardim São Luis, Marsilac e Morumbi.
Como o estabelecimento de redes ajuda na luta contra o Juvenicídio
Dentro dos caminhos possíveis para a solução desses acontecimentos está a criação de redes que estimulam e apoiam as juventudes a ocuparem seus espaços dentro da sociedade, assim como a serem reconhecidas como protagonistas das suas histórias, potencialidades e ações.
Para isso, é necessário um trabalho estrutural e conjunto entre Estado e sociedade civil organizada que faça resistência e atue no combate aos ataques sofridos pelos jovens, especialmente negros e periféricos.
A construção de espaços que apoiem e ofereçam ações organizadas e sistemáticas de proteção, cuidado, além de suporte material e físico para os jovens que precisam ir e vir dentro das cidades, é essencial e urgente.
A seguir, vamos mostrar algumas redes que atuam na Zona Sul de São Paulo que cumprem esta função e redes de pessoas e organizações que ocupam este espaço já há algum tempo.
Conheça as redes na periferia Sul de São Paulo que apoiam a luta contra as violências institucionais que jovens periféricos sofrem
A luta contra os diversos tipos de violências sofridas pelos jovens nas periferias não é nova. Existem organizações que se dedicam ao combate dos problemas relacionados ao Juvenicídio há muito tempo e, neste tópico, apresentamos algumas iniciativas dedicadas ao desenvolvimento de ações de apoio, proteção e resistência dentro da periferia da região Sul de São Paulo.
Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio
Em atividade desde 2017, a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio atua em defesa a vida e contra a violência de estado nos territórios periféricos do Estado de São Paulo, entre eles Grajaú, Parelheiros, Capão Redondo, Jardim Ângela, Campo Limpo, Jardim Miriam, Jardim São Luis, Parque Bristol, Cidade Ademar e Paraisópolis.
Considerando os conceitos de Juvenicídio, genocídio, trabalho em rede e territorialidade, esta rede atua através da articulação de movimentos sociais, profissionais e moradores em ações de proteção às vítimas e testemunhas, no enfrentamento ao abuso policial, na visibilidade das violências do Estado em territórios de alta vulnerabilidade, na articulação de redes formais e informais de apoio, além da garantia de direitos básicos e humanos e justiça nos territórios.
O que esta rede faz para enfrentar o Juvenicídio?
- Campanhas que visibilizam as violências do Estado nos territórios;
- Protege física e legalmente as vítimas e as testemunhas das violências;
- Enfrenta o abuso policial;
- Incentiva no território a formação de outras redes, tanto formais como informais, para influenciar a efetivação das políticas públicas já existentes;
- Garante, por meio de articulações de diversos atores, a efetivação dos direitos básicos;
- Promove o acesso à justiça nos territórios;
- Fortalece, por meio de mobilizações, formações e estratégias locais;
- Promove formação para a defesa e a promoção dos direitos humanos.
Márcio Bhering é um dos articuladores da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio. Ele atua na Zona Sul da cidade de São Paulo e explica a importância da escolha da atuação em rede ao invés de ações centralizadas.
[gdlr_quote align=”center” ]”O trabalho em rede, quando feito de forma horizontal e com pessoas dos territórios, consegue articular e mobilizar a comunidade em torno do tema da violência de Estado, racismo institucional e o Juvenicídio. Acreditamos que somente com a junção de atores locais, serviços públicos, coletivos e organizações a gente consegue diminuir a ação violenta do Estado nas quebradas”. [/gdlr_quote]
Conversamos com o Márcio em maio de 2021 e nesta época ele acompanhava o caso de dois jovens mortos por policiais e mais outros dez casos de prisões forjadas na periferia Sul de São Paulo.
[gdlr_quote align=”center” ]”Hoje, a Rede de Proteção é referência na atuação da região e as demandas não param de chegar.” – explica.[/gdlr_quote]
“O trabalho na Zona Sul tem se intensificado e criado mais laços da Rede por conta da alta demanda que tem aparecido entre os diversos atores citados acima (como os moradores, as organizações, os coletivos e até mandatos parlamentares). Nosso trabalho, além de ter a base no território, também luta por políticas públicas de combate a violência do Estado nos órgãos do governo, como Defensoria Pública e Ministério Público. Temos reuniões mensais com as instituições para que políticas públicas de enfrentamento à violência do Estado sejam construídas coletivamente e implementadas de fato. Pensamos ainda no cuidado com as famílias. Um grupo de psicólogos atende as mães que perderam seus filhos e outro grupo acompanha mães que têm seus filhos presos”, explica Márcio.
Uma mobilização desse tamanho para encarar um desafio tão estrutural, sem dúvida, não seria possível se não unisse esforços de muitas pessoas. A atuação em rede, especialmente daqueles que conhecem e vivem o problema enfrentado, é essencial.
[gdlr_video url=”https://www.youtube.com/watch?v=3gjUO1oZoJ8″ ]
Você pode ver também o Márcio falando neste vídeo. É o Seminário de Segurança Digital. Especialmente a partir do minuto 43, o Márcio fala especificamente sobre a Rede, seu nascimento e funcionamento. Todo este vídeo é uma aula sobre as violências do Estado, construção e o uso das redes para resistir contra o Juvenicídio institucionalizado. Vale muito a pena!
Rede Justiça Restaurativa
O CDHEP – Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo é outro exemplo de organização não governamental que tem como objetivo promover estratégias de formação, articulação, comunicação e incidência em políticas públicas para prevenir e superar as diversas formas de violência existentes nas periferias.
Entre as principais frentes de atuação do CDHEP está o projeto Rede Justiça Restaurativa. Nele, o centro trabalha para a estruturação e/ou fortalecimento de Núcleos de Justiça Restaurativa em 10 tribunais espalhados pelo país, apoiando as cortes locais que atendem ao Sistema de Justiça Criminal e ao Sistema Socioeducativo, colaborando para a resolução pacífica de conflitos e com o enfrentamento do encarceramento ou internação em massa.
O que a Rede Justiça Restaurativa faz e como isso influencia a Zona Sul de São Paulo?
Nos encontros de formação do projeto são abordados temas como os diferentes tipos de violências presentes na sociedade brasileira: racismo, machismo, desigualdades sociais econômicas, além de assuntos relacionados à política de segurança pública. A Rede Justiça Restaurativa é realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com o apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública por meio do Departamento Penitenciário Nacional (Depen).
Não apenas a mortalidade de jovens negros periféricos é altíssima, como foi dito no início deste post, mas também, segundo a especialista em encarceramento em massa Juliana Borges afirma, 56% dos acusados em varas criminais são negros, enquanto em juizados especiais que analisam casos menos graves, este número se inverte tendo maioria branca (52,6%) (fonte: JusBrasil).
A Rede se dedica a alterar o entendimento de juízes sobre a realidade dos negros, jovens e periféricos. Atualmente, juízes que estão muito distantes das realidades destas populações, colaboram para que o sistema judicial aprofunde as desigualdades acreditando que estas pessoas são inimigas penais e que precisam ser controladas e vigiadas.
O que a Rede acredita é que, influenciando e transformando a percepção de juízes sobre a realidade destas pessoas, o número de abordagens violentas e pedidos de prisão vai diminuir como consequência. Hoje o pedido de prisão puro e simples, no Brasil, já é encarado como uma espécie de antecipação de condenação e esta abordagem em excesso acontece, na maioria das vezes, pelo desconhecimento por parte dos juízes sobre a realidade das populações periféricas.
Escola Feminista Abya Yala
Criada em 2019 e localizada no Capão Redondo, um dos maiores bairros da periferia da cidade de São Paulo, a Escola Feminista Abya Yala é um espaço coletivo de mulheres periféricas que tem como foco o fortalecimento, a organização, a formação, o cuidado e autocuidado de mulheres também jovens que são vítimas de violência em suas comunidades.
A fundadora da escola, Helena Silvestre, acredita e afirma que a violência institucional, que sustenta o processo do Juvenicídio nos territórios, pode ser enfrentada com intervenções essencialmente feministas. O feminismo e o combate à violência doméstica são alguns dos principais temas abordados nos encontros promovidos pela Escola. Com o início da pandemia, o trabalho se intensificou com as ações de arrecadação de alimentos, água, produtos de limpeza e higiene direcionados a mulheres chefes de família, além de tratamento psicoterapêutico para aquelas que vivem em situação de sofrimento emocional agravado.
PerifaSul 2050 – Um projeto em rede para transformar a periferia sul de SP
A Fundação ABH incentiva a criação e apoia o trabalho em rede. Trabalhar em rede é parte de seu DNA. Foi assim que surgiu o PerifaSul 2050, um projeto que estabelece a criação de uma rede com atores locais, com conhecimentos e experiências complementares. Estes atores têm como objetivo comum pensar as temáticas prioritárias para o território e ações de modo que cada um dentro da rede possa se enxergar e entender como colaborar para esta transformação.
Foram vários temas trazidos pelo grupo, dividido em 3 temas “guarda-chuva”:
- desenvolvimento comunitário;
- inclusão produtiva; e
- vida digna e bem estar.
Dentre os assuntos que estão nestes temas guarda-chuva, um deles é o juvenicídio.
A rede PerifaSul 2050 une diversas OSCs (Organizações da Sociedade Civil) e coletivos que buscam melhorar a periferia sul de São Paulo. É com a participação dos membros da Rede que trocam melhores práticas, contatos, demandas e oportunidades para a periferia e pensam em ações concretas e factíveis para trabalharem as temáticas que entendem como prioritárias.
E você, conhece alguma ação de combate ao Juvenicídio na sua região? Compartilhe nos comentários e ajude a fortalecer estas redes!