O papel da juventude no desenvolvimento comunitário da periferia sul de São Paulo vai muito além de sua participação em projetos locais. Num território marcado por desafios históricos e desigualdades, os jovens despontam como força transformadora que, com criatividade, coragem e senso de coletivo, ocupam espaços por meio da arte, da cultura, do empreendedorismo, da política e dentre outros meios, assumindo um protagonismo que rompe barreiras e redesenha narrativas.
Neste artigo, falamos sobre como os jovens periféricos agem para transformar suas comunidades, criando soluções inovadoras para antigos problemas e fortalecendo laços que impulsionam a mudança.
O que é Desenvolvimento Comunitário?
O conceito de desenvolvimento comunitário é amplamente discutido em estudos sociais, economia e planejamento urbano. Ele se refere ao processo pelo qual membros de uma comunidade se unem para identificar e resolver problemas locais, melhorar suas condições de vida e promover o bem-estar coletivo.
O professor austríaco John Friedmann, pioneiro de renome internacional em teoria e planejamento urbano, define o desenvolvimento comunitário a partir do conceito de desenvolvimento alternativo, que, sob sua perspectiva, é centrado na valorização da autonomia, da participação ativa e do fortalecimento das comunidades locais.
Em seu livro “Empowerment: The Politics of Alternative Development” (1992), Friedmann argumenta que o desenvolvimento comunitário, dentro do escopo do desenvolvimento alternativo, é um processo de transformação social que visa redistribuir o poder em benefício dos mais pobres e marginalizados.
Além disso, Friedmann destaca outros elementos que embasam o desenvolvimento comunitário:
- Empoderamento como eixo central: Friedmann define empoderamento como a capacidade das pessoas e comunidades de adquirirem controle sobre suas próprias vidas e recursos, participando ativamente das decisões que moldam seu futuro. Ele vê o desenvolvimento comunitário como uma forma de redistribuir o poder, promovendo a justiça social e a inclusão.
- Planejamento como prática social: O planejamento, para Friedmann, deve ser descentralizado e voltado para a transformação social. Ele acredita que as comunidades locais têm o conhecimento e as capacidades necessárias para liderar processos de desenvolvimento, e cabe aos planejadores criar espaços para que isso aconteça.
- Ação de base e autodeterminação: Friedmann enfatiza a importância das iniciativas que nascem dentro das comunidades (ações de base), em oposição às soluções impostas por governos ou organizações externas. Ele argumenta que o verdadeiro desenvolvimento comunitário só ocorre quando há autodeterminação.
- Fortalecimento do capital social e político: Para Friedmann, o desenvolvimento comunitário é um processo que não apenas melhora condições materiais, mas também fortalece os laços sociais, a organização política e a capacidade de ação coletiva das comunidades.
- Integração com o contexto global: Embora enfatize a autonomia local, Friedmann reconhece que o desenvolvimento comunitário está inserido em contextos mais amplos de desigualdade estrutural. Assim, ele defende que as ações locais devem se conectar a movimentos mais amplos por justiça e equidade.
Desafios da Juventude na Periferia
Nos últimos anos, o Brasil tem apresentado a maior população jovem de sua história. De acordo com o Censo 2022 do IBGE, cerca de 22 milhões de brasileiros têm entre 15 e 29 anos. Só no estado de São Paulo são mais de 9 milhões, já na capital esse valor ultrapassa os 2 milhões, e quando consideramos as favelas e comunidades urbanas, o levantamento registra mais de 900 mil pessoas, na mesma faixa etária, que enfrentam desafios diários.
A primeira dificuldade foi serem reconhecidos como sujeitos de direito. Isso porque, a palavra “juventude” só foi incluída como tal na Constituição Federal Brasileira em 2010, com a criação do Estatuto da Juventude, que abriu o caminho para se pensar em políticas públicas específicas para a juventude a partir dos direitos previstos em lei. São eles:
- Direito à cidadania, à participação social e à representação juvenil
- Direito à educação
- Direito à profissionalização, ao trabalho e à renda
- Direito à diversidade e à igualdade
- Direito à saúde
- Direito à cultura
- Direito à comunicação e à liberdade de expressão
- Direito ao desporto e ao lazer
- Direito ao território e à mobilidade
- Direito à sustentabilidade e ao meio ambiente
- Direito à segurança pública e ao acesso à justiça
Além disso, os jovens brasileiros, especialmente os periféricos, enfrentam outras questões que impactam o seu desenvolvimento. De acordo com a pesquisa “Injustiças estruturais entre jovens na cidade de São Paulo”, da organização Juventudes Potentes, os principais desafios são:
- 84% vivem em áreas afetadas por problemas urbanos como falta de água, luz, alagamentos e outros desafios.
- 42% levam mais de 1 hora para chegar ao centro da cidade.
- 60% sentem que o tempo gasto no transporte impacta negativamente suas vidas.
- 68% já ficaram sem dinheiro para pagar a passagem.
- 21% abandonaram a escola devido à dificuldade de conciliar estudos, trabalho e outras responsabilidades.
- 44% já consideraram abandonar os estudos, mas 78% ainda pretendem concluir, enxergando na educação uma oportunidade de mudança.
O levantamento traz ainda 10 “soluções” para os problemas dos jovens que vivem nas periferias da cidade de São Paulo:
- Oferecer reforço escolar para reduzir as desigualdades educacionais;
- Promover maior aproximação das escolas às demandas dos jovens periféricos, considerando aspectos como trabalho, condições de vida, habilidades existentes e a serem desenvolvidas, projetos de vida, saúde mental, entre outros;
- Facilitar a inserção mais qualificada dos jovens no mercado de trabalho;
- Promover o uso qualificado e consciente da Internet;
- Criar meios para garantir a inclusão e a permanência dos jovens no trabalho, com atenção especial ao estudante trabalhador e/ou às jovens mães;
- Desenvolver políticas públicas que incentivem e fiscalizem os direitos trabalhistas e a inclusão produtiva;
- Estimular a instalação de empresas nas periferias, gerando oportunidades locais;
- Construir programas de capacitação articulados entre Governo, OSCs e empresas, alinhados aos interesses dos jovens, às tendências do mercado, às profissões do futuro e às oportunidades de desenvolvimento do território;
- Transformar a cultura organizacional das empresas para acolher o jovem trabalhador desde o processo seletivo, garantindo condições favoráveis ao seu crescimento;
- Incentivar novas dinâmicas de trabalho voltadas para as realidades e necessidades dos jovens periféricos.
Apesar desses desafios, a juventude não é apenas marcada por vulnerabilidades. Pelo contrário, ela pode ser entendida como uma juventude-potência, um conceito que reconhece os jovens como agentes de transformação social.
Os chamados jovens-potência são indivíduos de 15 a 29 anos em situação de vulnerabilidade social, sem acesso a oportunidades formais de educação ou emprego que, mesmo diante dessas adversidades, buscam alinhar estudos, trabalho e vida social aos seus projetos de vida.
Essa perspectiva vê os jovens não apenas como indivíduos em transição para a vida adulta, mas como sujeitos plenos de capacidades criativas, inovadoras e mobilizadoras. Eles expressam esse potencial em diversas frentes, criando novas formas de organização e fortalecendo o desenvolvimento comunitário de seus territórios, como uma resposta ativa às desigualdades históricas que enfrentam.
Iniciativas de Transformação Comunitária
Os jovens da periferia sul de São Paulo, cada vez mais, têm se destacado como protagonistas de iniciativas que promovem o desenvolvimento comunitário do território e melhoram a qualidade de vida de seus moradores. Veja o que os jovens têm feito na quebrada!
1. Arte e Cultura como Ferramentas de Transformação
Coletivo Slam do 13
Com quase 12 anos de atividade, o Coletivo Slam do 13 promove a literatura periférica na zona sul de São Paulo com batalhas de poesia autoral, realizadas toda última segunda-feira do mês no Terminal Santo Amaro. Liderado por Caio Feitoza, Maite Costa, Jéssica Campos, Santos Drummond e Thiago Peixoto, o grupo organiza disputas poéticas e recebe convidados especiais, ampliando a voz do jovem periférico.
Além disso, o Slam do 13 atua em escolas públicas e privadas, incentivando a leitura e a escrita entre os jovens do futuro e capacitando os professores a utilizarem a poesia para dialogar com os alunos sobre os mais variados temas sociais.
Coletivo IncentivArt
O Coletivo IncentivArt, que participou do primeiro edital do FCP M’Boi (Fundo Comunitário PerifaSul M’Boi Mirim), surgiu em 2022 com o objetivo de apoiar o desenvolvimento de artistas independentes da periferia sul de São Paulo em diversas áreas, como arte falada, música, poesia, artes visuais, gastronomia e moda, através da produção de conteúdos audiovisuais.
2. Empreendedorismo Social
Podcast SociElas e Podcast Social
Criado pela radialista Tainá Ferreira, de 27 anos, e pelo produtor Fábio Cardoso, de 29, jovens residentes do Jardim Apurá, no distrito da Pedreira, extremo sul de São Paulo, o Podcast SociElas tem como objetivo divulgar o trabalho de mulheres empreendedoras periféricas, dos mais diversos nichos e faixas etárias.
Os episódios são disponibilizados no canal Podcast Social do YouTube, que também tem em seu acervo episódios de programa homônimo que Fábio comandava, em parceria com Eduardo Cruz, antes mesmo do nascimento do SociElas.
3. Educação e Capacitação
Encrespados
O coletivo Encrespados, que participou do primeiro edital do FCP M’Boi (Fundo Comunitário PerifaSul M’Boi Mirim), surgiu em 2015 com o objetivo de promover uma educação inclusiva e combater o racismo. Formado por um grupo de adolescentes do ensino médio, o coletivo nasceu da percepção de que a escola não abordava temas essenciais para a formação cidadã. Conscientes do papel transformador da educação, reuniram jovens, educadores e gestores para debater os desafios enfrentados pelos estudantes, principalmente em questões de raça, gênero e classe. Desde então, o grupo desenvolve metodologias inovadoras que estimulam reflexões e soluções, criando espaços para que os alunos expressem suas opiniões e participem.
Juventudes Potentes
Citada em tópicos anteriores, Juventudes Potentes é uma iniciativa que se propõe a reduzir desigualdades educacionais e criar oportunidades de desenvolvimento para jovens em situação de vulnerabilidade social, conectando os jovens-potência das periferias de São Paulo às oportunidades de formação e geração de renda.
Assim como na Fundação ABH, o trabalho da organização Juventudes Potentes é desenvolvido em rede, com foco em:
- Inovar a partir do que já existe, mas também de olho nas tendências futuras, ampliando soluções que já demonstram eficácia;
- Inspirar os jovens-potência a agir com urgência e propósito, criando estratégias baseadas em dados para fortalecer organizações e gerar impacto;
- Promover mudanças nas empresas, tornando-as mais inclusivas, e desenvolver modelos de financiamento sustentável;
- Influenciar políticas públicas, ampliando o alcance das soluções;
- e empoderar jovens com menos acesso à oportunidades, estimulando sua liderança e potencial transformador.
4. Mobilização Política e Cidadania
Periferia em Movimento
O Periferia em Movimento é uma plataforma independente de jornalismo de quebrada, desenvolvida e gerida por jovens da periferia sul de São Paulo, que usam a comunicação como instrumento para dar voz à população periférica, amplificando narrativas locais e fomentando o debate sobre temas como direitos humanos, diversidade e justiça social e questões políticas que afetam diretamente inclusive jovens e as comunidades do território.
5. Sustentabilidade e Meio Ambiente
Na Ilha – Agência Jovem de Notícias
Criada por jovens estudantes do Grajaú, no extremo sul da capital paulista, a Agência Jovem de Notícias tem como principal objetivo exaltar a importância da preservação do território da Ilha do Bororé, uma península que abriga importantes remanescentes florestais secundários pertencentes ao bioma mata atlântica, bem como diversos patrimônios históricos que retratam a trajetória da Colônia Paulista.
Desenvolvido a partir da participação do grupo no NAEA (Núcleo de Arte e Educação Ambiental do Bororé) em 2021, projeto orientado para a educação ambiental feito por uma equipe de arquitetos e geógrafos da USP (Universidade de São Paulo), a Na Ilha – Agência Jovem de Notícias atua com foco em pensar soluções para resolver os impactos das crises climáticas a partir de quatro frentes urgentes no território: o desmatamento, a falta de saneamento básico e energia, e a mobilidade urbana.
A juventude da periferia sul de São Paulo mostra cada vez mais o seu potencial como agente de transformação social, superando desafios, assumindo o protagonismo de suas próprias histórias, construindo soluções inovadoras em diversas áreas, com um único objetivo: o desenvolvimento de suas comunidades.
Ao se engajarem ativamente pelo bem-estar coletivo, esses jovens promovem justiça social, inclusão e novas oportunidades para outros jovens e futuras gerações de comunidades historicamente marginalizadas.
A criatividade, determinação e senso de coletividade desses jovens demonstram que é possível transformar o presente, mesmo diante das adversidades, construindo bases para uma sociedade mais equitativa e sustentável.
A periferia sul de São Paulo está repleta de jovens que estão fazendo a diferença na vida de muitos outros jovens da quebrada. Se você é um deles, tem uma iniciativa ou presta algum tipo de serviço no território, faça seu cadastro no Mapa PerifaSul 2050! Vamos juntos mostrar para todos a potência que a periferia sul tem!
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