A tecnologia desempenha um papel crucial na sociedade moderna, impactando diretamente a nossa forma de viver, trabalhar e interagir. Não à toa, é um dos norteadores da mandala do PerifaSul 2050, que reúne os temas prioritários para a periferia sul de São Paulo levantados pelos próprios moradores e agentes locais.
Isso porque a tecnologia está presente em tudo, desde facilitar o acesso à informação, promover avanços na área da saúde, ampliar as possibilidades no campo da educação até acelerar processos industriais, aumentando a produtividade em diversos segmentos importantes para o desenvolvimento comunitário local.
Entretanto, as periferias e seus moradores ainda enfrentam barreiras no acesso às tecnologias, como acesso limitado à internet e equipamentos, falta de habilidades digitais e de apoio de diversos setores para superar esses desafios.
No artigo de hoje, vamos entender a importância da tecnologia para o progresso das periferias e conhecer iniciativas da periferia sul paulistana que atuam em prol da inclusão digital da população periférica.
Inclusão Digital e Seus Desafios
A inclusão digital visa garantir que todas as pessoas tenham acesso e oportunidades de utilizar as tecnologias digitais, como computadores, internet, smartphones e outras ferramentas tecnológicas, independentemente de fatores como idade, localização geográfica e situação socioeconômica.
A inclusão digital envolve diferentes aspectos, como acesso a dispositivos (computadores, tablets e smartphones); conexão à internet de qualidade; capacitação para utilizar aplicativos e ferramentas digitais; compreensão dos riscos e das oportunidades do mundo digital; acesso a conteúdo relevante e participação ativa na sociedade digital.
Apesar do acesso à internet ter saltado de 13% para 85% em 20 anos, de acordo com a pesquisa TIC Domicílios 2023, e das tecnologias de comunicação e informação (TIC) terem sido facilitadas na última década, o tema ainda é um desafio com diversos obstáculos a serem ultrapassados, sobretudo nas regiões periféricas e entre as classes mais baixas. A seguir, listamos alguns deles:
Acesso Limitado à Infraestrutura de Internet
De acordo com a Pnad TIC (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC)), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 92,5% dos lares brasileiros estavam conectados à internet em 2023, mas 5,9 milhões de famílias estavam à margem da rede. Ainda que os processos tenham avançado ao longo dos anos, a realidade é que muitas comunidades periféricas enfrentam carência de infraestrutura de rede com conexões lentas, instáveis e, em alguns locais, inexistentes.
Quando se fala da forma de conexão, de acordo com a Pnad TIC, o percentual de domicílios do país com serviço de rede móvel celular funcionando para internet ou telefonia foi de 95,3% em área urbana e 67,4% em área rural.
Se o assunto é a distribuição de antenas de rede móvel em São Paulo, a diferença entre as regiões centrais e os extremos da capital paulista é gritante. De acordo com o Mapa da Desigualdade 2023, enquanto na Bela Vista, centro da cidade, existem 37,5 antenas por km², em Marsilac, periferia sul da cidade, há 0,06 por km². Vale salientar que em 2022, esse número era ainda menor, 0,02 por km². Parelheiros vem na sequência com 0,29 antenas por km², Pedreira com 1,36 por km² está na nona posição entre os 10 piores do ranking e Jd. Ângela é o décimo primeiro pior resultado do levantamento nesse quesito, com 1,6 por km².
A baixa oferta de espaços públicos que oferecem acesso gratuito à internet e computadores, os famosos telecentros, também é uma dor a ser solucionada. Apesar de existirem 26 unidades na periferia sul de São Paulo, há bairros, sobretudo nos extremos do território, que possuem poucas ou nenhuma opção. Parelheiros e Capão Redondo, por exemplo, possuem um telecentro, já o Grajaú, Marsilac e Cidade Ademar não têm nenhum.
Além disso, até pelo menos 2019, usuários reclamavam da defasagem dos equipamentos, bem como da baixa qualidade da internet. Cabe salientar que, atualmente, alguns dos telecentros oferecem cursos para aperfeiçoamento das habilidades no uso da internet e dos meios digitais, entre outras modalidades. Ao final deste artigo mencionaremos algumas das oportunidades de aperfeiçoamento que encontramos disponíveis.
Não foi só nos telecentros que a população reclamou de internet lenta. Em 2014, a Prefeitura de São Paulo implementou o Programa WiFi Livre 120, que disponibiliza um sinal de WiFi em 120 praças localizadas nos principais distritos da capital paulista, 28 só na zona sul. No entanto, há localidades em que o serviço nem sempre funciona. Foi o que apontou o site Agência Mural que, em dezembro de 2023, visitou os locais em que o WiFi foi disponibilizado e constatou falhas em 31% deles, especialmente na zona leste.
Na periferia sul o saldo foi positivo, apenas o Parque Arariba, na região do Campo Limpo, apresentou uma inconsistência relevante, com conexão lenta e até inacessível em alguns aparelhos verificados.
Analfabetismo Digital
Quando o assunto é habilidades digitais, o Brasil registra um índice longe do ideal. De acordo com um estudo divulgado pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) em 2024, quase metade dos brasileiros (48%) não têm habilidades digitais básicas. Isso porque, poucos têm acesso ou tempo para se dedicar ao desenvolvimento de competências digitais.
O levantamento apontou que, em 2023, apenas 29,9% dos brasileiros possuía habilidades tecnológicas em nível básico, o que inclui copiar ou mover um arquivo ou pasta, copiar e colar informações dentro de um documento, enviar e-mails com arquivos anexados e transferir arquivos entre um computador e outros dispositivos. 17,9% têm conhecimento intermediário e os considerados avançados representam apenas 4,2% do total.
De acordo com o Pnad TIC, esse é também o principal motivo para o distanciamento de 33,2% dos brasileiros da internet. O estudo apontou ainda fatores como: serviço de acesso à internet ainda é caro (30%); falta de necessidade em acessar à rede (23,4%); cobertura de rede não atende o endereço daquele domicílio (4,7%); equipamento de instalação é caro (3,7%); falta tempo para usar (1,4%); preocupação com privacidade ou segurança (0,6%) e outros motivos (3%).
Escassez de Dispositivos Tecnológicos
A pesquisa TIC Domicílios de 2023 trouxe dados relevantes e contrastantes sobre os dispositivos de Tecnologia de Informação e Comunicação (TIC), como o fato de 95% dos domicílios terem telefone celular, mas menos de 20% terem um computador de mesa e pouco mais de 30% terem um notebook.
O Pnad TIC complementa esses dados indicando que, de 2022 para 2023, o percentual de domicílios com microcomputador caiu de 40,2% para 39,0%. Em 2016, essa proporção era de 45,9%. Esses dados evidenciam a tendência de troca desse dispositivo por aparelhos mais portáteis, como os smartphones.
Por outro lado, o estudo apontou a expansão contínua da posse de telefone celular de 77,4%, em 2016, quando foi feito o primeiro levantamento, para 87,6% em 2023; o equivalente a 163,8 milhões de pessoas.
A pesquisa apurou ainda que 23,2 milhões de brasileiros não possuem telefone celular e que os principais motivos mencionados para não terem o aparelho são: não saber usá-lo (27,8%), o dispositivo ser caro (23,4%) e falta de necessidade (21,2%).
Iniciativas da Periferia Sul de São Paulo que Apostam na Tecnologia e Inclusão Digital
A periferia sul de São Paulo conta com diversas iniciativas que utilizam do poder tecnológico para capacitar crianças, jovens e adultos em diferentes caminhos profissionais e artísticos, como forma de lazer e para fortalecer a voz e o protagonismo dos moradores do território, além de possibilitar que se alinhem com as profissões do futuro na área de tecnologia como: técnico de informação, analista de marketing digital, desenvolvedor de software, especialista em machine learning, cientista de dados, entre outras.
É o caso do Favela Programada, curso de programação realizado pela Access Brazil na Associação Amigos da Tia Edna, Capão Redondo, que oferece apoio e oportunidades de desenvolvimento para crianças, adolescentes e suas famílias que vivem em situação de vulnerabilidade. A formação contempla meninos e meninas de 14 a 18 anos que, semanalmente, aprendem técnicas de programação, com foco em observação, pesquisa e entendimento reflexivo sobre as potencialidades da técnica, capacitando-os a construir seus próprios projetos de programação.
No campo da programação, a +1Code oferece educação tecnológica e acesso à trilhas formativas para o desenvolvimento social e econômico para pessoas de baixa renda e moradores das periferias do Brasil, de forma gratuita e totalmente online.
O curso, gratuito e online, Bootcamp de IA generativa da AWS (Amazon Web Services), realizado pela escola de tecnologia Trybe, surge como um caminho para as profissões do futuro no campo das inteligências artificiais, neste caso específico, os participantes aprendem as ferramentas e os recursos de inteligência artificial generativa da AWS. A instituição oferece ainda a formação em Lógica de Programação, descrita como uma base sólida para quem pretende ingressar na área de forma efetiva.
A Fundação Paulistana, da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo da Prefeitura de São Paulo, realiza o projeto AvançaTech, que oferece formações na área de tecnologia. Na modalidade EAD, o curso “Introdução à Tecnologia da Informação com Base no Sistema de Programação” ensina desde conceitos básicos de matemática até fundamentos de programação. Já presencialmente, os interessados podem participar de quatro cursos de programação de 120 horas cada: Desenvolvedor Back End JAVA, .NET e PHP, focado em criação de aplicações seguras e integração de bancos de dados, e Desenvolvedor React para criação de aplicações web modernas e interativas, com ênfase em componentes reutilizáveis e desenvolvimento ágil.
Os cursos acontecem nos seguintes locais e regiões:
- CFCCT – Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes (Zona Leste)
- CATE Interlagos (Zona Sul)
- CEU Freguesia do Ó (Zona Norte)
- CEU Carrão (Zona Leste – Sala Descentralizada)
- CEU Parque Novo Mundo (Zona Norte – Sala Descentralizada)
- CEU Pinheirinho (Zona Sul – Sala Descentralizada)
O Instituto da Oportunidade Social (IOS) oferece cursos gratuitos na área de tecnologia como: programação, suporte em TI, comunicação e mídias sociais, entre outras opções voltadas exclusivamente para jovens entre 15 e 29 anos, que já tenham concluído o ensino médio, preferencialmente na rede pública e residam no município de São Paulo. As formações são presenciais e ocorrem em associações localizadas em todas as regiões da capital paulista. Na zona sul, os interessados podem cursar programação web na sede do NURAP (Núcleo de Aprendizagem Profissional e Assistência Social), em Santo Amaro, e aprender sobre comunicação e mídias sociais na Sociedade Santos Mártires, no Jd. Ângela.
A ATN oferece cursos online e gratuitos que atendem desde quem busca letramento digital até quem tem o conhecimento básico da máquina e suas ferramentas e deseja aprofundar seus conhecimentos na área, seja em programação, softwares variados, inteligência artificial, gestão de negócios ou outros.
Temos ainda iniciativas que realizam oficinas de profissões, em que a tecnologia tem um papel fundamental, como o Coletivo Fora de Frequência (CFF), apoiado pela Fundação ABH em 2024, que desenvolve a formação “Hip Hop e Empreendedorismo: Arte, Corre Profissional e Sustentabilidade”, com aulas práticas de DJ e MC, ensinando o uso dos equipamentos tecnológicos utilizados nos ofícios, como notebook, fones de ouvido de qualidade, discos e softwares utilizados para edição e composição das músicas, além de conteúdos sobre empreendedorismo e sustentabilidade no âmbito artístico e cultural, para jovens de 14 a 29 anos. No Centro Cultural Mocambo, o CFF realiza também cursos de produção musical e experimentações de jogos eletrônicos.
Criado pela jornalista e educomunicadora Gisele Alexandre do Manda Notícias, outra ação é o Clube de Criadores EduCapão, oficina de educomunicação para desconstruir estereótipos e criar novas narrativas sobre a periferia sul de São Paulo a partir de três aspectos fundamentais: território e identidade; cultura e comunicação periférica e produção e distribuição de conteúdo multimídia.
Seguindo essa tríade, os participantes do projeto aprendem mais sobre a história do território, fortalecem a identificação com sua ancestralidade, compreendem como os grupos de rap, saraus e outros movimentos fortaleceram a cultural local e o modo as iniciativas periféricas se comunicam dentro e fora da bolha e explora as possibilidades das tecnologias em oficinas de captação de áudio e vídeo, produção de podcast, divulgação nas redes sociais, entre outras práticas. A Fundação ABH apoiou por duas vezes essa iniciativa, que entregou dois produtos distintos em cada um dos processos, no primeiro um fanzine, publicação não profissional e independente, feita por fãs de um determinado tema, já outro resultou em um podcast e por falar nesse formato.
O próprio Manda Notícias é outro grande exemplo de como a tecnologia tem um papel crucial na democratização do acesso à informação. A iniciativa foi uma das primeiras no Brasil a utilizar o WhatsApp como ferramenta para informar a população sobre os desdobramentos da pandemia e outros temas em meio à febre das fake news que alarmaram o país durante a pandemia da COVID-19. Desse modo, os conteúdos em formato de texto e áudio chegaram a todos, inclusive às pessoas com algum tipo de deficiência. O projeto expandiu e agora também é um podcast disponível nas principais plataformas de áudio.
No campo da comunicação, podemos citar ainda o coletivo Desenrola e Não Me Enrola, que, além de produzir informação a partir das identidades culturais dos sujeitos e territórios periféricos, realiza diversas formações como a anual Você Repórter da Periferia, que desde 2014 realiza oficinas de redação jornalística, fotografia, videorreportagem, oficina de técnicas de entrevista, conteúdo para redes sociais, making of e produção, vivência com comunicadores e articuladores culturais, além de uma imersão jornalística prática pelas periferias de São Paulo.
Recentemente, o coletivo promoveu também um oficina de podcast, com objetivo de estimular e capacitar os jovens periféricos para a criação de conteúdos utilizando equipamentos acessíveis e softwares gratuitos.
O audiovisual também é a peça central do IbiraLab, iniciativa apoiada pela Fundação ABH em 2024. No espaço de estudo e experimentação para a comunicação periférica do Bloco do Beco, os moradores do Jd. Ibirapuera e adjacências podem participar de oficinas que ensinam o uso de máquinas e ferramentas fundamentais para o mercado, além de formações em outros aspectos da área, como roteiro e escrita criativa.
Uma outra maneira de uso da tecnologia no empreendedorismo são os influenciadores, que mais do que promoverem seus próprios trabalhos, se aliam a grandes marcas para dar visibilidade e destacar a riqueza cultural e o potencial da periferia sul de São Paulo.
- Thatha Alves (@thathaalvespoetisa) produz conteúdo sobre moda, beleza e arte, divulgando seus livros e a grife A Bença Mãe.
- MC Sacana (@mcsacanasp) compartilha sua rotina em Paraisópolis desde 2011, promovendo a carreira musical e a Paraíso Records.
- Mayra Souza (@maispramay) cria conteúdos sobre moda, maquiagem e cultura periférica do Capão Redondo.
- Valter Rege (@valterrege), preto e gay, produz campanhas sobre LGBTQIAP+, negritude e cinema.
- No perfil Maternidade Sapatão (@maternidadesapatao), o casal Aline Brito e Alessandra Ayabá, compartilham vivências de mães pretas e lésbicas.
- Milena Enevoada (@enevoadaa) produz conteúdo sobre cultura pop, literatura e rotina em múltiplas plataformas.
- Andreza Delgado (@andrezadelgado), reconhecida pela BBC, co-criou a PerifaCon, primeira convenção nerd das favelas.
Conclusão
A inclusão digital é essencial para reduzir desigualdades, porque facilita o acesso às oportunidades educacionais, profissionais e sociais, garantindo que todos os cidadãos possam usufruir dos benefícios trazidos pelas tecnologias na era digital. Portanto, devemos ficar atentos e, se possível, apoiar essas e outras iniciativas que atuam nesse campo para fortalecê-lo no território e além dele.
Ah, e se você tem uma iniciativa na periferia sul de São Paulo que trabalha para melhorar essas e outras questões da comunidade, faça seu cadastro no Mapa PerifaSul 2050! Vamos juntos mostrar para todos a potência que a periferia sul tem!
Gostou do artigo de hoje e quer contribuir para o desenvolvimento da periferia sul de São Paulo? Fique ligado nos nossos canais de comunicação para acompanhar nossa atuação. Aproveite e apoie a Fundação ABH para possamos ampliar essa rede e gerar ainda mais impacto na periferia sul de São Paulo.