A jornalista, educadora popular e comunicadora social Gisele Alexandre nasceu na zona norte da cidade de São Paulo, mas veio para a periferia sul da capital ainda criança, onde reside até os dias de hoje no Capão Redondo.
Gisele cresceu junto com o distrito em que vive. Por lá presenciou movimentos sociais de luta por moradia, lazer, educação, dentre outros direitos de todo o cidadão. Viveu a falta de infraestrutura, insegurança e a violência de perto.
Com o tempo, viu o bairro evoluir, melhorar em diversos aspectos, como a criação de espaços de lazer, promoção da cultura e educação. Entretanto, um dos exemplos mais marcantes desse processo é o colégio em que estudou do ensino fundamental ao médio.
A jornalista relata que quando era aluna o local era composto de barracões, sem segurança e baixa infraestrutura. Hoje, ela descreve o local como uma escola de qualidade, na qual inclusive estuda seu filho.
Gisele reforça que, embora ainda existam muitos problemas para serem resolvidos, muita coisa mudou graças à luta popular; esse movimento a fez refletir sobre seu papel na sociedade, descobrindo a comunicação como uma forte aliada nessa jornada.
Posteriormente, formou-se e iniciou sua jornada como jornalista periférica em 2007, utilizando a comunicação como um meio de expressar e mostrar problemas estruturais da região, mas também retratar o lado positivo das periferias de São Paulo.
A comunicadora social iniciou no jornalismo periférico pela internet, numa época em que o Orkut era a rede social mais famosa, escrevendo para um site destinado a produzir conteúdo sobre o Capão Redondo. Com o tempo, absorveu a experiência somada à evolução dos recursos tecnológicos para expandir o seu trabalho.
Hoje, atua como comunicadora social em uma organização que trabalha com a defesa dos direitos humanos, é correspondente do Capão Redondo na Agência Mural de Jornalismo das Periferias e participa da Escola Feminista Abya Yala, onde debate sobre diversos temas, como a participação de mulheres nos veículos de comunicação.
Além disso, produz e distribui o podcast “Manda Notícias”, hoje com mais de 80 episódios disponíveis, que leva informações de utilidade pública com qualidade e em linguagem acessível para a população periférica.
Gisele se orgulha de sua história, de seu bairro, de sua trajetória no jornalismo periférico e da representatividade que carrega enquanto mulher e comunicadora. A evolução da periferia sul é constante e ela está sempre pronta para registrar tudo!
Veja o vídeo e conheça mais da jornada de Gisele como agente de transformação.
Leia a entrevista na íntegra abaixo
Conte para a gente um pouco de sua história e como ela se liga com a história do Capão Redondo.
Me chamo Gisele Alexandre, sou jornalista, educadora popular, comunicadora social, tenho 38 anos e moro no Capão Redondo.
Nasci na zona norte, na Vila Nova Cachoeirinha, em 1982. Em 1988, meus pais foram contemplados com um apartamento na Cohab Adventista, no Capão Redondo, e foi assim que chegamos na periferia sul.
Quando cheguei, o território era muito diferente do que é hoje; não tinha asfalto, a questão de transporte era muito difícil, não tinha creches… Cresci vendo o movimento da transformação do território e também acompanhei o movimento de moradia, o mutirão da Cohab Adventista, que foi um projeto da Luiza Erundina.
Tive várias questões familiares; meu pai foi dependente químico por muitos anos e acompanhei de perto questões comuns na periferia como a violência e amigos sendo assassinados.
Durante minha infância cresci acompanhando todo o movimento do Capão Redondo, não só esse lado da violência e de todos os problemas estruturais que tínhamos, mas também a evolução cultural com o movimento de saraus, do rap; acredito que fui muito privilegiada dentro da minha história enquanto moradora do Capão Redondo por ter vivenciado tantas experiências importantes e contrastantes.
Presenciei um período histórico do bairro quando foram surgindo estratégias que minimizaram os impactos da violência e da desigualdade. Claro que hoje ainda temos um bairro com muita desigualdade, muitos problemas, mas superamos muitas coisas desde 1988 até hoje.
O que motivou você a seguir a carreira de jornalista?
O jornalismo surgiu na minha vida de forma muito espontânea. Quando comecei a estudar em uma escola chamada Euclides da Cunha, havia muitos professores que eram ativistas e militantes de movimentos sociais. Pela visão e experiência deles, comecei a ser apresentada para o território de uma maneira muito diferente e isso me despertou para a comunicação, não diretamente para o jornalismo, mas para as várias formas de se comunicar que temos dentro do território.
A primeira delas foi o Rap. Cresci ouvindo racionais MC; morava na Cohab Adventista, mesmo lugar onde o Mano Brown morava, e me chamava atenção a maneira como ele colocava as situações do território em suas letras.
Fui crescendo e entendendo um pouco mais sobre o movimento social, a desigualdade, o território e pensei que queria fazer alguma coisa que pudesse expressar não só as desigualdades, mas também as belezas que existem no bairro.
Trabalhava em uma empresa e lá comecei a escrever, apoiando a assessoria de imprensa com alguns releases e percebi que a escrita era algo através do qual poderia realizar esse meu desejo de comunicar. Assim surgiu o jornalismo na minha vida.
Comecei tardiamente a faculdade de jornalismo. Não entrei logo depois que saí da escola porque não tinha condições. Em 2005 consegui ingressar e, desde então, sempre soube que queria fazer jornalismo e mostrar a outra realidade que existe na periferia: a luta pelos direitos da população, desconstruir os estereótipos que são colocados pela mídia tradicional.
Há quanto tempo você trabalha com jornalismo periférico?
Comecei a atuar no jornalismo periférico em 2007 quando o acesso à internet ainda era muito difícil. Não existiam muitas redes sociais e a mais famosa era o Orkut. Foi nesse período que descobri o site capao.com.br, uma plataforma colaborativa (que existe até hoje) onde os interessados se inscrevem e começam a produzir e a postar conteúdos.
Foi nele que comecei a fazer coberturas, ir aos eventos do território e conhecer o que acontecia por lá. De lá para cá muita coisa evoluiu, muita coisa mudou, não só na maneira como fazemos o jornalismo periférico, mas também na forma como distribuímos esse conteúdo.
Quais projetos você desenvolve e participa atualmente?
Atualmente trabalho como comunicadora social em uma ONG e sou repórter correspondente para a Agência Mural de Jornalismo das Periferias. A Agência Mural é uma mídia que existe há 10 anos cujo objetivo é trazer notícias e reportagens positivas sobre as periferias de São Paulo e da grande São Paulo. Durante o período da quarentena em 2020 criei um podcast chamado Manda Notícias, que busca levar informação de qualidade para os moradores periféricos e promover a cultura local.
Como surgiu o podcast Manda Notícias? Como ele é desenvolvido e distribuído para o público?
A ideia do podcast surgiu em março de 2020 e o objetivo era levar informação relacionada a pandemia e a Covid-19 para os moradores da periferia.
Usei como principal meio de distribuição o Whatsapp, mas hoje o Manda Notícias já está na segunda temporada. Temos mais de 80 episódios gravados e o objetivo de levar notícias do cotidiano que são importantes para a periferia com uma linguagem acessível.
Traduzimos essas notícias do cotidiano e apresentamos os artistas, coletivos e todo o movimento de cultura que é tão forte aqui na zona sul de São Paulo.
O Manda Notícias é um pouco do que sempre fiz, mas traduzido para um meio com linguagem e formato mais democrático e acessível.
Como você enxerga o Capão Redondo hoje?
Entendo que o Capão Redondo evoluiu na questão estrutural; um exemplo muito forte para mim é a escola onde estudei todo o ensino fundamental e médio e que meu filho estuda hoje.
Na época, a escola era composta de barracões, uma estrutura muito precária; não havia segurança, os portões viviam quebrados; vi muita violência dentro da escola.
Hoje meu filho estuda lá e é uma escola com uma super infraestrutura, bem cuidada. Vejo que o bairro se desenvolveu muito e é importante dizer que a luta popular fez com que tudo isso acontecesse, nada veio de “mão beijada” pelo poder público.
Há instituições dentro do distrito do Capão Redondo que sempre foram muito fortes desde os anos 1980; todas as pessoas que fizeram parte do movimento de luta fizeram com que esse território tivesse uma área de lazer como a Fábrica de Cultura do Capão Redondo, tivesse o Parque Santo Dias bem estruturado, etc.
Ainda temos vários problemas no distrito como um córrego a ‘céu aberto’ com casas ao redor, problemas de saneamento básico, mas conseguimos evoluir e temos potencial para melhorar ainda mais. Adoro o meu território e acho que eu não deixaria a zona sul.
Qual a importância da Fundação ABH para o território?
Eu conheci a Fundação ABH em 2018 com o lançamento de seu primeiro edital. Era um edital colaborativo entre instituições e me interessei, achei muito diferente aquele formato. É importante quando temos pessoas que realmente se importam com o desenvolvimento local e apoiam em pessoas que são do território, que tem história, vivência e podem apoiar a iniciativa.
A Fundação ABH é importante para fomentar o desenvolvimento financeiro dentro dos coletivos de cultura e para conectar os dois lados da ponte. É importante que a gente ganhe visibilidade do outro lado da ponte, mas que o inverso também aconteça e traga tecnologias, conhecimentos que muitas vezes a gente não tem aqui na periferia e a Fundação ABH tem trazido isso para cá.
Qual a importância das mulheres nos veículos de comunicação?
Em todos os espaços precisamos pensar na equidade de gênero e o espaço para as mulheres é algo que temos conquistado. Viemos recentemente de um processo eleitoral em que tivemos um aumento do número de mulheres vereadoras nas cadeiras da câmara municipal.
Quando falamos de comunicação, falamos de narrativa, de linguagem, discurso e quando trabalhamos isso a partir de um olhar feminino conseguimos trazer outros sentidos para aquela comunicação. É essencial que tenhamos o protagonismo das mulheres na comunicação.
Faço comunicação há mais de 10 anos e durante muito tempo me senti invisível dentro de alguns espaços em que trabalhávamos comunicação por conta do machismo.
O homem é sempre visto como o protagonista de vários projetos e a mulher acaba sempre se colocando atrás disso. É muito importante que tomemos ciência disso e nos coloquemos à frente de alguns processos. Tenho feito esse percurso com o apoio de amigos homens para desconstruirmos essa cultura, conversando sempre sobre o machismo dentro da nossa área.
E é legal falarmos que temos um movimento muito forte de mulheres dentro do território. Desde o início de 2019, faço parte da Escola Feminista Abya Yala, uma rede construída por mulheres para mulheres periféricas aonde discutimos sobre muitas coisas, inclusive sobre a participação das mulheres na comunicação.
[gdlr_quote align=”center” ]Ter mulheres em qualquer espaço, seja de criatividade ou de poder político, é essencial para que a gente mantenha uma sociedade igualitária.[/gdlr_quote]