As mulheres negras representam 27,8% da população brasileira, mas seguem sendo um dos grupos que mais sofrem com as barreiras impostas pelas desigualdades sociais e econômicas.

Desde 2020, a Covid-19 vem contribuindo para que essas desigualdades ficassem ainda mais evidentes, sendo as mulheres negras o gênero e a cor que mais foram afetados pela pandemia. Trágico e emblemático, a primeira vítima do vírus na cidade do Rio de Janeiro foi uma mulher negra, doméstica, de 63 anos.

Muitas mulheres continuaram trabalhando, mesmo com as restrições da pandemia, por conta de questões econômicas, pois precisam trabalhar para se sustentar e muitas vezes alimentar a família.

Empregadas domésticas, babás, motoristas e profissionais que estavam na linha de frente da saúde, não tinham, e continuam não tendo, condições de deixar de trabalhar e muitas foram atingidas pelo desemprego.

“Mulheres pretas estão na base da pirâmide social, sempre sustentaram essa sociedade desde o leite materno. Mulheres pretas enfrentam as barreiras do machismo e dos racismos”, diz Adriana Correia, uma das criadoras do coletivo Feminismo Comunitário, localizado no bairro do Real Parque.

De acordo com dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a diferença entre a taxa de desemprego entre brancos e pretos atingiu o pior nível desde 2012, sendo 17,8% para pretos, 15,4% para pardos e apenas 10,4% para brancos. 

O rendimento médio das mulheres negras esteve sempre muito abaixo dos rendimentos dos homens negros, das mulheres brancas e dos homens brancos, mesmo com o aumento do nível de escolaridade ou com o acesso a cargos mais elevados, é o que diz o Boletim das Mulheres Negras no Mercado de Trabalho.

“Senti isso mais forte em um trabalho que tive, onde uma mulher branca recebia um salário x e quando me subiram de cargo queriam me pagar um salário inferior ao que ela recebia”, conta Ana Paula Oliveira, uma das fundadoras do coletivo Feminismo Comunitário.

Além de tudo, a violência doméstica também foi um fator preocupante durante a pandemia. Segundo uma pesquisa do Instituto Datafolha, uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos, cerca de 17 milhões de mulheres, afirmam ter sofrido algum tipo de violência no último ano no Brasil.

Até mesmo nos casos de violência a mulher preta se destaca. De acordo com dados coletados pelo G1, 75% das mulheres assassinadas no Brasil no primeiro semestre de 2020 são negras.

“De uma forma bem resumida, enquanto mulheres brancas lutam por direitos iguais, mulheres negras lutam para sobreviver. Isso é comprovado cientificamente visto que mulheres negras morrem mais, sofrem violência obstétrica, são presas, entre outras violências vivenciadas apenas por mulheres negras”, diz Bárbara Lima, uma das criadoras do coletivo Feminismo Comunitário.

E foi pensando nas barreiras sociais enfrentadas pelas mulheres periféricas da cidade de São Paulo (SP), que um grupo de três jovens mulheres pretas idealizou, em janeiro de 2018, o coletivo Feminismo Comunitário RP, projeto apoiado pela Fundação ABH e parceiros no edital aTUAção PerifaSul.

 

Feminismo Comunitário

Segundo a Adriana Correia, o Feminismo Comunitário foi uma consequência positiva após um caso de feminicídio na comunidade do Real Parque em 2017. “A partir desse momento foi preciso resgatar a necessidade de um espaço seguro onde as mulheres pudessem ser ouvidas para compartilhar experiências e recorrer a ajuda se necessário”, diz ela.

As atividades começaram a partir de encontros mensais com conversas mediadas por voluntárias que compartilhavam assuntos com linguagem acessível e pertinentes ao feminismo.

O coletivo atua nos bairros Real Parque e Jardim Panorama, duas comunidades localizadas na cidade de São Paulo, no distrito do Morumbi, onde o contraste social é gritante.

O Feminismo Comunitário oferece oficinas de yoga e dança do ventre para fortalecer as mulheres fisicamente e mentalmente, a partir do desenvolvimento do autocuidado e da autoestima. Além dos encontros mensais só para mulheres, também há atividades de acolhimento, palestras, momentos para ouvir e serem ouvidas.

No entanto, com a pandemia, as oficinas de Yoga e Dança do Ventre estão sendo realizadas online e os encontros foram suspensos. “O número de participantes caiu muito, em decorrência desse novo modelo de atividades. Algumas mulheres ainda têm dificuldades para acessar a internet e aplicativos para as oficinas”, diz Adriana.

 

Feminismo para quem não sabe o que a palavra significa

Sempre pensando nas pautas locais, as criadoras do coletivo têm consciência sobre a desigualdade que envolve a região e fazem disso uma pauta constante, uma vez que as mulheres acabam sofrendo mais com essa desigualdade que os homens.

“Estamos localizadas em uma região onde a desigualdade bate à nossa porta assim que pisamos fora de nossas casas, ou abrimos nossas janelas. Sabemos que na parte “dos ricos” as mulheres são tratadas de forma diferente, no sentido de serem vistas como seres humanos. O nosso feminismo é para aquelas que não sabem o que a palavra significa”, diz Bárbara Lima.

De acordo com Bárbara, trabalhar o feminismo na periferia ainda é um processo, uma vez que sempre tem alguém que nunca ouviu falar sobre isso, mas o objetivo do projeto não é investir na parte teórica do feminismo e sim lidar com as necessidades das mulheres que precisam de amparo.

“O ponto crucial desse projeto não é estudar e ensinar sobre as teorias feministas. É sobre praticar o feminismo no dia a dia, acolhendo as mulheres que precisam, com uma instrução, uma palavra, um acolhimento, um abraço ou o silêncio para que elas falem”, diz Bárbara.

O empoderamento feminino é outra pauta destacada pelo coletivo, pois faz parte de toda uma construção de identidade da mulher. “É a afirmação da sua história, das suas conquistas, das suas cicatrizes, dores e superações, é saber o quão importante você é e o quanto você pode inspirar positivamente outras mulheres”, diz Ana Paula.

 

A Fundação ABH, o PerifaSul 2050 e o feminismo comunitário

A Fundação ABH atua com desenvolvimento comunitário local e tem o papel de potencializar a atuação de iniciativas sociais, (coletivos, movimentos, organizações e lideranças comunitárias, etc.) na periferia sul de São Paulo por meio de investimento financeiro, geração de conhecimento e formação de redes.

Uma das formas de potencializar o protagonismo local é o PerifaSul 2050 que, desde fevereiro de 2021 tem trazido para a pauta de discussão, entre outros temas, problemas relacionados a violência doméstica e abuso sexual, além de soluções voltadas para o empoderamento feminino e criação de espaços de acolhimento.

Algumas das preocupações destacadas durante as conversas são: dependência financeira, falta de espaços de acolhimento com profissionais preparados, falta de atenção para a saúde mental, entre outros temas.

Diante desses problemas, foram apontadas soluções de curto, médio e longo prazo, visando ajudar as mulheres de diferentes formas, por meio do empoderamento feminino e disponibilizando ferramentas e apoio especializado para que a ajuda seja de fato efetiva.

“É muito gratificante apoiar iniciativas potentes como a do Feminismo Comunitário, ver a evolução do trabalho dessas meninas e o impacto que levam para a comunidade. Acreditamos que, identificando e apoiando essas potências locais que têm interesse genuíno em melhorar a qualidade de vida de suas comunidades e conectando-as a uma rede maior de apoio, teremos mais força para juntos trabalharmos no combate às desigualdades.” afirma Marina Fay, Diretora Executiva da Fundação ABH.